quarta-feira, 18 de julho de 2012

Os poemas seleccionados na primeira fase

POEMAS CRIADOS PARA O PROJECTO ALDEIA POEMA

CHEIRA A CIPRESTE.
A sombra dos plátanos,
frondosos,
marca o luar.
Há risos abafados no escuro.
Dar a volta.
Ganhar a luz.
Tragar o fôlego do Universo.
E num ápice
vencer as criaturas das trevas.
Claridade ténue como conquista.
Venci o mundo.
Agora sou capaz.

[Escola Primária] António Martins, poema criado para o projecto ALDEIA POEMA, 2012


A CALÇADA REBENTA
num ribombar surdo,
quase trovoada de cores.
Os relâmpagos alinhados,
de cadência sincronizada,
forçam ao aninhar.
Apressado
sem soslaios
Eis o beirado. A paz.

[Rua do Saco] António Martins, poema criado para o projecto ALDEIA POEMA, 2012


UM TRAVO A SAL
crepitante e intenso
entre risos e estórias
de futuro, para a memória.
A calçada secular
marca o passo
pela sombra
do encontro.
Alinhados
como andorinhas
na azáfama do verão.

[Rua da Igreja] António Martins, poema criado para o projecto ALDEIA POEMA, 2012


TUDO SE APAGOU, não sei
É uma diversão
Ninguém se conhece
No mundo da escuridão

[A rua que se apaga] Rita Santos, poema criado para o projecto ALDEIA POEMA


SAIO DE CASA e sento-me no portado
esperando a volta da cadela
Olho em frente, montes, vacas, pastos.
Os pássaros fazem coro, num remoinho.
O vento bate nas árvores.

[O portado] Daniel Romana, poema criado para o projecto ALDEIA POEMA, 2012


CINCO DA MANHÃ
na tradicional vacada

Vem o bicho solto na minha direção

Enfrento
O coração bate
afónico

[Largo do Poço] João Pedro Ramos, poema criado para o projecto ALDEIA POEMA, 2012



ENTÃO ELA DISSE-LHE:
— Reparaste que ao longo da rua só havia árvores e flores do teu lado?
Reparaste também que ias regando essas árvores e flores?
— Não... Disse eu. Mas como?
— Ias regando-as com o teu sorriso...

 [Rua do Outeiro] Marta Nobre, poema criado para o projecto ALDEIA POEMA, 2012


POEMAS DO MUNDO

CANÇÃO

Rio cristalino
nos bosques de cardos,
lágrimas
dos peixes de ouro,
pranto, oh pranto,
sobre os precipícios.

Tão fundo é o rio
nos bosques de áruns
que se precipita
em voltas no abismo
- o rio estrondeia
por entre os loureiros.

Rio que eu amo,
leva-me, leva,
longe, tão longe,
pelo meio do campo,
sob as bátegas de chuva,
abraçado à amada.

América do Sul, Quíchuas, versão: Herberto Helder, in A Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o Futuro, Assírio&Alvim


PARA OBTER CHUVA

Vem, trovão, e olha à volta!
Vem, ó frio, e faz chover!
O trovão bate, o calor cresce.
Os grãos germinam se está calor.
Trigo florido,
feijão florido,
o vosso rosto olha os jardins.
Meloeiro de água, meloeiro de almíscar,
o vosso rosto olha os jardins.
Aé, aé, i!
Fazer chover.

América do Norte, Hopis, versão: Herberto Helder, in A Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o Futuro, Assírio&Alvim


CANÇÃO

Subiu a rapariga para cima da amoreira,
e ao cimo do limoeiro subiu o homem também.
Uma aranha os enlaçou, e tudo aquilo que é belo
não deixa que se separem.

Madagáscar, versão: Herberto Helder, in A Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o Futuro, Assírio&Alvim


CANÇÃO

Água azul; ei-la.
Entrei nela.
Fiquei todo azul.

América do Norte, Pimas, versão: Herberto Helder, in A Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o Futuro, Assírio&Alvim


POETAS DE SANTO AMADOR

Os bailes da estrada no meu tempo de moça. Era a maneira de nos divertirmos pela Páscoa.
Levávamos um lanche, assim se passava a segunda-feira de Páscoa.
As pessoas, as mais idosas, que nunca saíam de casa, nesse dia iam também, com os filhos pequenos.
Porque nesse tempo não havia carros e podiam brincar à vontade.

A folha do lírio branco
Cai na água faz espuma
Aqui tens quem te namora
Sem falsidade nenhuma                 

O mal vai aos aranhos
aos ratos e às formigas
Que me roeram os livros
De onde eu tirava as cantigas.

Maria Calado e Vítor Calado


DEPOIS DA SECA

Bate a chuva no telheiro,
Corre a água nos canais,
Os rios deitam para fora
Já se vê água nos "vais"

Já se vê água nos "vais"
os campos estão verdinhos,
As barragens vão enchendo
Já correm os ribeirinhos.

Dinis Santos Caeiro, in ...


Já vi uma lebre a zumbir
Nas asas dum bacalhau,
Uma pulga a parir moscas
E uma rato a jogar ao pau.

Vi uma cigarra a nadar
Com um trambolho atado ao rabo,
Pensei que eram coisas do Diabo
Pus-me de parte a olhar,
Vi uma galinha a mastigar;
Pensei de estar a dormir
Qundo aquela cena vi
Ia para dizer ouvi
Vir uma lebre a zumbir.

Mas também vi uma pega,
Tinha dentes numa asa,
Sem paredes vi uma casa,
Estava rasa de manteiga;
Vi um bezerro numa adega
A tocar num berimbau,
Formou-se ali um sarau,
Coisa que se podia ver,
Vi um piolho a escrever
Nas asas de um bacalhau.

Vi uma aranha de chapéu
Parecia uma senhorita,
Mas que osga tão bonita
Que até levava véu,
Vi cinco estrelas no céu
Nem pardas, nem jardas dem toscas,
Ratos cegos e carochas
Tudo no chão a brincar,
Para mais graça dar
Uma pulga a parir moscas.

Vi uma cobra de xaile
De pele de figo branco,
Vi um lagarto com uns taimancos
Dizendo: vamos para o baile;
Está perfeito o enxoval
Para quem gosta não está mau,
Saiu de lá um "alacrau"
Tudo com medo fugiu,
Só apenas resistiu
Um rato jogar ao pau.

José da Conceição Godinho, in...

MANUEL GUSMÃO

Invocação
a.

Como se reaprendesses,s a falar ou
declinando viesses pelos arquivos
aéreos, assim, com seu espanto vêm

as coisas às mãos imaginantes.
Na fronteira os simulacros crepitam
e cantam em pequenas chamas: frauta,

uma flauta acesa na chuva. Passa
marítimo por ali um vento e apenas
estremece de leve no escuro o jardim.

Clinamen: asas explodindo; o clamor
no cimo das plantações cintilantes;
o tempo nascendo do tempo, abrindo

as vozes que proliferam, irradiam.
Como se move uma música que
só dificilmente dança: uma praia

hesita, insiste até ao aparecimento.
Levanta-se então uma linha de terra
como uma coroa luminosa:

o mundo oscila nas margens da luz
e alguém chama pelo teu nome.

in Dois Sóis, a Rosa - a arquitectura do Mundo, de Manuel Gusmão, Editorial Caminho, 1990

ALBERTO CAEIRO


XX 

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios

E navega nele ainda,

Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,

A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha

E o Tejo entra no mar em Portugal.

Toda a gente sabe isso.

Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia

E para onde ele vai

E donde ele vem.

E por isso, porque pertence a menos gente,

É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o mundo.

Para além do Tejo há a América

E a fortuna daqueles que a encontram.

Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.

Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

 In O Guardador de Rebanhos
In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001

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